As viagens de mamãe

 
 
 

ontem fiz uma viagem

mas mamãe, deve fazer todos os dias

 

conto para vocês

 

meio-dia

como de costume peguei meu carro e segui para casa dela para o almoço

 

é um percurso pequeno, faço isso algumas vezes na semana e normalmente chego lá em vinte minutos

 

mas ontem, foi diferente

 

as ruas estavam todas paradas

uma pressa no ar

e em todos os olhares

época de Natal

 

os carros iam se enfiando em todos os espaços possíveis

 

até o waze ficou maluco (aquele aplicativo)

mudava a rota a cada minuto

e eu mais maluca que ele seguia as mudanças com a sensação de estar em um labirinto

 

finalmente cheguei lá

uma hora e vinte minutos depois

 

eu estava com fome, exausta e aflita porque ela já me esperava há uma hora

sentadinha naquela cadeira de rodas

tão dura

tão impessoal

tão diferente de tudo que experimentou nessa vida

 

mamãe sofreu um AVC devastador há dois anos

parou tudo

nela

em seu corpo

na sua vida

nas nossas vidas

 

somos quatro filhos

e formamos um time e tanto

dividimos as tarefas

as responsabilidades

 

somos tão diferentes uns dos outros

mas no conjunto, formamos um timão

 

o nome dela é Alda

mas cada um de nós, filhos, a chama de um jeito

 

acho também que cada um a ama de uma forma diferente

 

minha irmã gêmea a chama de Aldinha

eu a chamo de meu amor

minha irmã mais nova, de minha linda

e meu irmão mais velho, de D.Alda

 

ontem foi meu dia de acompanhá-la em uma videochamada com o plano médico

primeira vez que a procuram, que nos procuram...

dois anos depois de tudo começar

 

mas vamos lá

 

segui todas as instruções que enviaram

baixei aplicativo, preenchi formulário, informei datas, números, matrículas

e meia hora depois estávamos prontas

com a informática

 

agora é a vez de arrumar a mamãe

escolhemos a roupa mais bonita, xale, batom

ou seria camisola?

arruma o cabelo

acho que já está na hora de cortar...

claro, porque ela, apesar de tudo, não dispensa nenhum desses detalhes

continua a ser a mulher mais vaidosa com quem já convivi

 

mas estava muito calor

e ela começou a ficar cansada

preferiu ficar deitadinha

 

agora ela adormeceu

 

mas eu continuava a postos esperando a chamada

 

nada

 

agora o aplicativo não abria

liguei lá e ouvi o seguinte:

-Às vezes acontece

a senhora espera, que entrarão em contato

 

e assim foi

 

minutos depois, uma ligação telefônica, daquelas que parecem de muitos anos atrás

voz bem distante

nada de moderno

bem antiga até

o aplicativo não funcionou

o sistema deles caiu

 

o meu, por aqui, também

eu já estava no modo "pause"

 

respondi a muitas perguntas. A respeito de remédios, horários, dificuldades e tantas coisas que essa realidade traz para as nossas vidas

 

como não havia imagem, nem pediram para vê-la

tantos preparativos foram para nada...

era como se ela não existisse

 

mas também, naquele momento, ela já estava tão longe dali

sabe-se lá em quais viagens

dormia

 

e nossa conversa telefônica terminou assim:

-ah, agora entraremos em contato, para marcar a próxima visita...

 

próxima visita?

que visita? pensei comigo...

 

olhei para ela, ali, dormindo profundamente e até agradeci que não tenha participado daquela chatice

 

e saí de lá com a estranha sensação de nada

o que tinha sido aquilo mesmo?

 

no caminho de volta para casa, mais surpresas

 

as ruas continuavam lotadas de carros e tudo parado

  

a solução seria seguir no ritmo que me fosse permitido

 

mas para isso precisava de companhia

pensei

lembrei do podcast do programa da Gabriela Prioli

é um programa de entrevistas bem gostoso de ouvir

ela traz pessoas muito diferentes

traz mundos novos para conhecer

 

e pronto

  

fugi dali com a Prioli

  

fiquei presa no trânsito e escolhi a companhia

 

mas preciso te contar o seguinte

mesmo ouvindo tanta gente boa, foi um caminho longo e cansativo

 

cheguei em casa exausta

 

e um pensamento não me deixou desde então

 

eu

estava presa no trânsito

escolhi as minhas companhias

e segui com elas

cheguei em casa

 

e mamãe?

 

que está presa naquela casa, naquela cama, e não chegará a lugar nenhum?

 

que tão poucas vezes pode ter a companhia que escolheu...

 

quais são as viagens que faz para se manter assim tão lúcida?

e de anel e batom?

em quais mundos ela viaja?

a quem ela visita?